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16 de novembro de 2017

Jorge de Lima - De Poemas Negros


Serra da Barriga

Jorge de Lima

Serra da Barriga!
Barriga de negra-mina!
As outras montanhas se cobrem de neve,
de noiva, de nuvem, de verde!
E tu, de Loanda, de panos-da-costa,
de argolas, de contas, de quilombos!

Serra da Barriga!
Te vejo da casa em que nasci.
Que medo danado de negro fujão!

Serra da Barriga, buchuda, redonda,
de jeito de mama, de anca, de ventre de negra!
Mundaú te lambeu! Mundaú te lambeu!
Cadê teus bumbuns, teus sambas, teus jongos?
Serra da Barriga,
Serra da Barriga, as tuas noites de mandinga,
cheirando a maconha, cheirando a liamba?
Os teus meio-dias: tibum nos peraus!
Tibum nas lagoas!

Pixains que saem secos, cobrindo
sovacos de sucupira,
barrigas de baraúna!
Mundaú te lambeu! Mundaú te lambeu!
De noite: tantãs, curros-curros
e bumbas, batuques e baques!
E bumbas!
E cucas: ô ô!
E bantos: ê ê
Aqui não há cangas, nem troncos, nem banzos!
Aqui é Zumbi!
Barriga da África! Serra da minha terra!
Te vejo bulindo, mexendo, gozando Zumbi!
Depois, minha serra, tu desabando, caindo,
levando nos braços Zumbi!


Ola! Negro 

Jorge de Lima

Os netos de teus mulatos e de teus cafuzos e a quarta e a quinta

gerações de teu sangue sofredor tentarão apagar tua cor!
E as gerações dessas gerações quando apagarem não apagarão 
de suas almas, a tua alma , negro!
Pai-João, Mãe-Negra, Fulo, Zumbi,
negro-fujão, negro cativo, negro rebelde
negro cabinda, negro congo, negro ioruba,
negro que foste para o algodão de U.S.A
para os canaviais do Brasil,
para o tronco, para o colar de ferro, para a canga
de todos os senhores do mundo;
eu melhor compreendo agora os teus blues
nesta hora triste da raça branca, negro!

Olá, Negro! Olá, Negro!

A raça que te enforca, enforca-se de tédio, negro!
E és tu que a alegras ainda com os teus jazzes,
com os teus sons, com os teus lundus!
Os poetas, os libertadores, os que derramaram
babosas torrentes de falsa piedade
não compreendiam que tu ias rir!
E o teu riso, e a tua virgindade e os teus medos e a tua bondade
mudariam a alma branca cansada de todas as ferocidades!

Olá, Negro!

Pai-João, Mã-Negra, Fulo, Zumbi
que traíste as Sinhás nas Casas Grandes,
que cantaste para o sinhô dormir,
que te revoltaste também contra o Sinhô;
quantos séculos há passado
e quantos sobre a tua noite,
sobre as tuas mandingas, sobre os teus medos, sobre tuas alegrias!

Olá, Negro!

negro que foste para o algodão de U.S.A
para os canaviais do Brasil,
quantas vezes as carapinhas hão de embranquecer
para que os canaviais possam dar mais doçura à alma humana?

Olá, Negro!

Negro, ó proletário sem perdão,
proletário, bom,
proletário bom!
Blues
Jazzes,
songs,
lundus…
Apanhavas com vontade de cantar,
choravas com vontade de sorrir
com vontade de fazer mandinga para o branco ficar bom,
para o chicote doer menos,
para o dia acabar e negro dormir!
Não basta iluminares hoje as noites dos brancos com teus jazzes
com tuas danças, com tuas gargalhadas!
Olá, Negro! O dia está nascendo!
O dia está nascendo ou será a tua gargalhada que vem vindo?

Olá, Negro!
Olá, Negro!


História

Jorge de Lima

Era princesa.
Um libata a adquiriu por um caco de espelho.
Veio encangada para o litoral,
arrastada pelos comboieiros
Peça muito boa: não faltava um dente
e era mais bonita que qualquer inglesa.
No tombadilho o capitão deflorou-a.
Em nagô elevou a voz para Oxalá.
Pôs-se a coçar-se porque ele não ouviu.
Navio negreiro? não; navio tumbeiro.
Depois foi ferrada com uma âncora nas ancas,
depois foi possuída pelos marinheiros,
depois passou pela alfândega,
depois saiu do Valongo,
entrou no amor do feitor,
apaixonou o Sinhô,
enciumou a Sinhá,
apanhou, apanhou, apanhou.
Fugiu para o mato.
Capitão do campo a levou.
Pegou-se com os orixás:
fez bobó de inhame
para Sinhô comer,
fez aluá para ele beber;
fez mandinga para o Sinhô a amar.
A Sinhá mandou arrebentar-lhe os dentes:
Fute, Cafute, Pé-de-pato, Não-sei-que-diga,
avança na branca e me vinga.
Exu escangalha ela, amofina ela,
amuxila ela que eu não tenho defesa de homem,
sou só uma mulher perdida neste mundão.
Neste mundão.
Louvado seja Oxalá.
Para sempre seja louvado..


(De “Poemas Negros”)

11 de outubro de 2017

Dentro da Noite Veloz


Ferreira Gullar


I - Na quebrada do Yuro 
eram 13,30 horas 
(em São Paulo 
era mais tarde; em Paris anoitecera; 
na Ásia o sono era seda) 
Na quebrada do rio Yuro 
a claridade da hora 
mostrava seu fundo escuro: 
as águas limpas batiam 
sem passado e sem futuro. 
Estalo de mato, pio 
de ave, brisa nas folhas 
era silêncio o barulho 
a paisagem 
(que se move) 
está imóvel, se move 
dentro de si 
(igual que uma máquina de lavar
lavando sob o céu boliviano, a paisagem 
com suas polias e correntes de ar) 
Na quebrada do Yuro 
não era hora nenhuma 
só pedras e águas 

II 
Não era hora nenhuma 
até que um tiro 
explode em pássaros 
e animais até que passos 
vozes na água rosto nas folhas 
peito ofegando a clorofila 
penetra o sangue humano 
e a história se move a paisagem 
como um trem começa a andar 
Na quebrada do Yuro eram 13,30 horas 

III 
Ernesto Che Guevara 
teu fim está perto 
não basta estar certo 
para vencer a batalha 
Ernesto Che Guevara 
Entrega-te à prisão 
não basta ter razão 
pra não morrer de bala 
Ernesto Che Guevara 
não estejas iludido 
a bala entra em teu corpo 
como em qualquer bandido 
Ernesto Che Guevara 
por que lutas ainda?
a batalha está finda 
antes que o dia acabe 
Ernesto Che Guevara 
é chegada a tua hora 
e o povo ignora 
se por ele lutavas 

IV 
Correm as águas do Yuro, o tiroteio agora 
é mais intenso, o inimigo avança 
e fecha o cerco. 
Os guerrilheiros 
em pequenos grupos divididos 
agüentam a luta, protegem a retirada 
dos companheiros feridos. 
No alto, 
grandes massas de nuvens se deslocam lentamente 
sobrevoando países 
em direção ao Pacífico, de cabeleira azul. 
Uma greve em Santiago. Chove 
na Jamaica. Em Buenos Aires há sol 
nas alamedas arborizadas, um general maquina um golpe. 
Uma família festeja bodas de prata num trem que se aproxima 
de Montevidéu. À beira da estrada 
muge um boi da Swift. A Bolsa 
no Rio fecha em alta ou baixa. 
Inti Peredo, Benigno, Urbano, Eustáquio, Ñato 
castigam o avanço dos rangers . 
Urbano tomba, Eustáquio
Che Guevara sustenta 
o fogo, uma rajada o atinge, atira ainda, solve-se-lhe 
o joelho, no espanto 
os companheiros voltam 
para apanhá-lo. É tarde. Fogem. 
A noite veloz se fecha sobre o rosto dos mortos. 

V
Não está morto, só ferido 
Num helicóptero iangue 
é levado para Higuera 
onde a morte o espera 
Não morrerá das feridas 
ganhas no combate 
mas de mão assassina 
que o abate 
Não morrerá das feridas 
ganhas no combate 
mas de mão assassina 
que o abate 
Não morrerá das feridas 
ganhas a céu aberto 
mas de um golpe escondido 
ao nascer do dia 
Assim o levam pra morte 
(sujo de terra e de sangue) 
subjugado no bojo 
de um helicóptero ianque 
É seu último vôo 
sobre a América Latina 
sob o fulgir das estrelas 
que nada sabem dos homens 
que nada sabem do sonho, 
da esperança, da alegria, 
da luta surda do homem 
pela flor da cada dia 
É seu último vôo 
sobre a choupana de homens 
que não sabem o que se passa 
naquela noite de outubro 
quem passa sobre seu teto 
dentro daquele barulho 
quem é levado pra morte 
naquela noite noturna 

VI
A noite é mais veloz nos trópicos 
(com seus na vertigem das folhas na explosão 
monturos) das águas sujas 
surdas 
nos pantanais 
é mais veloz sob a pele da treva, na 
conspiração de azuis 
e vermelhos pulsando 
como vaginas frutas bocas 
vegetais (confundidos com sonhos) 
ou um ramo florido feito um relâmpago 
parado sobre uma cisterna d´água 
no escuro 
É mais funda 
a noite no sono 
do homem na sua carne 
de coca e de fome 
e dentro do pote uma caneca 
de lata velha de ervilha 
da Armour Company 
A noite é mais veloz nos trópicos 
com seus monturos 
e cassinos de jogos 
entre as pernas das putas 
o assalto a mão armada 
aberta em sangue a vida. 
É mais veloz (e mais demorada) 
nos cárceres 
a noite latino-americana 
entre interrogatórios 
e torturas (lá fora as violetas) 
e mais violenta (a noite) 
na cona da ditadura 
Sob a pele da treva, os frutos 
crescem 
conspira o açúcar 
(de boca para baixo) debaixo 
das pedras, debaixo 
da palavra escrita no muro 
ABAIX 
e inacabada Ó Tlalhuicole 
as vozes soterradas da platina 
Das plumas que ondularam já não resta 
mais que a lembrança 
no vento 
Mas é o dia (com seus monturos) 
pulsando dentro do chão 
como um pulso 
apesar da South American Gold and Platinum 
é a língua do dia 
no azinhavre 
Golpeábamos en tanto los muros de adobe 
y era nuestra herencia una red de agujeros 
é a língua do homem 
sob a noite 
no leprosário de San Pablo 
nas ruínas de Tiahuanaco 
nas galerias de chumbo e silicose 
da Cerro de Pasço Corporation 
Hemos comido grama salitrosa 
piedras de adobe lagartijas ratones 
tierra en polvo y gusanos 
até que 
(de dentro dos monturos) irrumpa 
com seu bastão turquesa 

VII 
Súbito vimos ao mundo 
E nos chamamos Ernesto 
Súbito vimos ao mundo 
e estamos 
na América Latina 
Mas a vida onde está 
nos perguntamos 
Nas tavernas? 
nas eternas tardes tardas? 
nas favelas 
onde a história fede a merda? 
no cinema? 
na fêmea caverna de sonhos 
e de urina? 
ou na ingrata 
faina do poema? 
(a vida 
que se esvai 
no estuário do Prata) 
Serei cantor 
serei poeta? 
Responde o cobre (da Anaconda Copper): 
Serás assaltante 
E proxeneta 
Policial jagunço alcagueta 
Serei pederasta e homicida? 
serei o viciado? 
Responde o ferro (da Bethlehem Steel): 
Serás ministro de Estado 
e suicida 
Serei dentista 
talvez quem sabe oftalmologista? 
Otorrinolaringologista? 
Responde a bauxita (da Kaiser Aluminium): 
serás médico aborteiro 
que dá mais dinheiro 
Serei um merda 
quero ser um merda 
Quero de fato viver. 
Mas onde está essa imunda 
vida – mesmo que imunda? 
No hospício? 
num santo 
ofício? 
no orifício da bunda? 
Devo mudar o mundo, 
a República? A vida 
terei de plantá-la 
como um estandarte 
em praça pública? 

VIII 
A vida muda como a cor dos frutos 
lentamente 
e para sempre 
A vida muda como a flor em fruto 
velozmente 
A vida muda como a água em folhas 
o sonho em luz elétrica 
a rosa desembrulha do carbono 
o pássaro da boca 
mas 
quando for tempo 
E é tempo todo o tempo 
mas 
não basta um século para fazer a pétala 
que um só minuto faz 
ou não 
mas 
a vida muda 
a vida muda o morto em multidão.

13 de agosto de 2017

Poema de Bertolt Brecht

Aos que vierem depois de nós



Bertolt-Brecht



I
Realmente, vivemos tempos sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranqüilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: “Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!”

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.

II
Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

III
Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.


– Bertolt Brecht (Tradução Manuel Bandeira)

29 de maio de 2017

Poema de Jorge de Lima

Felicidade

Jorge de Lima

Tão bonita a Lagoa Mundaú!
Eu vi os meninos pobres que iam tirar sururu.
Um bando deles. Uns tinham doze ou treze anos e pareciam ter oito. 
Amarelos. Perto da Satuba tem um massapê ótimo. 
Eles amassam, amassam, fazem balas. 
Cozidas são mais gostosas que sururu. 
E quem não sabe comer barro não sabe tirar sururu, com gosto. 
Comer terra! Quando a bala vermelhinha cor de telha toca na
língua a boca se enche d’água para a bala se embeber. 
Os meninos amarelos têm água por demais na boca. 
Gosto de terra não é gosto de comida, de sal, de açúcar, de carne.
É gosto diferente. De terra! É um gosto doente como gosto de maleita. 
Também quem não tem maleita não sabe tirar sururu com gosto. 
O frio da maleita não se importa com sol nem com chuva 
nem com o frio que está por fora da gente, no ar. 
É um frio que vem de dentro. 
Dá-se a mão e a mão está com 40. 
Mas o frio é bom porque é diferente dos outros frios. 
Os meninos que vão tirar sururu têm os olhos sumidos. 
Mãe-maleita dorme com eles no jirau de pau-cundu. 
Mãe-maleita dá-lhes sonhos de febre. 
Os meninos sonham coisas doidas. 
Que uma inglesinha que passou uma vez 
numa lancha-automóvel veio urinar no massapê. 
Eles sentem o gosto da inglesinha, 
sonhando com o gosto do massapê mijado.
Têm outros sonhos, todos gostosos.
Os meninos tiram sururu com gosto. Ao meio dia o sol tine. 
A água está morna e suja. 
Ali pertinho já é a lama do sururu. Que gosto pisar na lama! 
É diferente de pisar nas praias, na neve, na grama. 
Os pés dos meninos têm sensibilidades inéditas. 
A lama abarca o pé, entra entre os dedos, 
mais grossa do que baba de boi, gruda-se na pele, 
dá uma coceira boa nas frieiras. 
Os meninos entram mais. A lama sobe. 
É uma carícia peganhenta pelo corpo. 
As mãos descem na lama. As canoas afundam de sururu. 
O sol está tinindo, mas ninguém sente calor. 
Tudo é bom. A miséria é boa. A lama é amorosa. 
Parece que a vida é uma feitiçaria de sonho de maleita.

26 de maio de 2017


Canais e Lagoas 

Paulo Renault

Arrependido e mudo deito-me a céu aberto 
sobre as margens quentes e molhadas 
que sem nenhum segredo 
há pouco as águas da Mãe do Norte cobriam. 

Acosto-me e embora ainda confuso, 
arruíno as minhas lembranças 
com o que não há, nunca mais haverá, jamais. 

A insanidade foi tão assoladora, 
amou tanto a si mesma que a jaçanã almada 
não vislumbrara o seu fim 
que a si mesmo causa espanto. 
Foi a inundação do nada onde tudo havia. 

O anum-preto, que de gaitadeira em gaitadeira 
dispunha sua pequena sombra sobre o arisco aratu, 
não canta mais, chamando a companheira 
para juntos voarem canal afora. 

Do Rio das Ciladas e das Pedras ao Pontal, 
emergiram duas grandes mães: 
a do Norte e a do Sul. 
Duas grandes bacias d'água, 
animais e plantas, águas de viver. 
De jangadas, canoas, vidas, gente. 

Viverás de tainhas, carapebas, 
camarões, soias, taiobas, sururus... 

Oh, Mãe do Norte, 
devorai as tristezas nos olhos das crianças 
trazidas para as tuas margens 
pelos ventos dos canaviais, 
palas dobras de Coqueiro Seco, 
de Luzia Santa, do Velho Fernão 
e da cidade que tapou seus alagadiços. 

Oh, Mãe, derrama tuas lágrimas 
águas serenas e escuras 
sobre a minha alma mestiça. 
Quero viver e morrer em ti 
mergulhado e envergonhando 
nas tuas profundezas. 

Quem sabe, minha alma bohêmia e sonhadora, 
bêbada e injusta encontre-se novamente com seu hálito 
e com os passarinhos que me levarão 
para o céu desfeito nas asas da galinha d’água, 
da jaçanã, onde dançarei com a caipora, 
a musa dos manguezais que te margearam.

24 de maio de 2017

Poema de Jorge Cooper


Mundaú (a Lagoa)

Jorge Cooper

Ontem
deu-me de rever a Mundaú
O sol ainda era a metade
no outro lado do mundo
e já nos galhos do mangue
às centenas posava de sangue-de-boi 
o aratu
- Mas por lá não vi as canoas 
nas coroas de sururu

É que a Mundaú imerge 
torna-se quimera 
pântano
lamarão da lagoa que era
- Nem sequer continua a ser
o poema à miséria

Lágrima seca nos olhos do povo
esperança enganada
- a Mundaú se faz chão
Mais nada


"Jorge Cooper, pela sua poesia sem arremedos provincianos, destituída de ranços acadêmicos, situa-se no limite entre os “Metaphisical poets” e o lirismo cavalheiresco e palaciano da poesia trovadoresca dos Minnesanger alemães da Idade Média. Isto tudo com pitadas dos goliardos, “poemas proletários”, pois Cooper, em momento algum, sacraliza a oralidade burguesa." (Marcos de Farias Costa – “Jorge Cooper: o Minnesanger Alagoano” – Artigo publicado no Jornal de Alagoas, em 21 de abril de 1987.

1 de maio de 2017

Poema de Cicero Melo

(Hoje choveu, mas não esteve triste)


Cicero Melo


Hoje choveu, mas não esteve triste.
Olhava a rua assassinada e suja.
Lembrava-lhe o menino que resiste
Em não crescer no tempo que enferruja.
Lembrava-lhe o menino prematuro
Que ante o caule do tempo tão interno,
Brincava de marinho atrás do muro:
Um mundo desenhado no caderno.
Desenhara, entretanto, bons navios,
Tecidos de papel e mente afora,
Se compondo de chuvas e de rios.
Hoje choveu, mas não esteve triste.
Cresceu dentro de si um deus que chora,
E o seu barco levou tudo que existe.
Levou primeiro o pai que nunca o vira,
E depois sua mãe que sempre amara.
O irmão que tinha deus assassinara
Com as mãos do outro irmão; o mundo gira
Perdido no seu eixo, agora a chuva
Está matando a terra e seu rebento.
Águas sobem além do firmamento.
O barco de papel à mão segura
Conduz para o seu grande coração
Todos os sem pecados e animais
Marcados pelos deuses, com sinais,
E daqueles caídos em danação.
E daqueles queimando os seus cabelos,
E daqueles rasgando o peito em vão,
E daqueles perdidos em pesadelos,
E daqueles comendo o coração,
E daqueles sedentos de serpente,
E daqueles danados sem paixão,
E daqueles perdidos na semente,
E daqueles comendo a própria mão,
E daqueles morrendo à mão mesquinha,
E daqueles com dedo sempre em riste,
E daqueles que a fome desalinha,
E a saída, parece, nunca existe.
E o barco de papel vai navegando.
Como brincar num mundo se afogando?

(Cicero Melo, in O POEMA DA DANAÇÃO, Ed. Bagaço, 2006)

23 de abril de 2017

Jorge de Lima - uma das poesias mais fascinantes do Brasil

O poeta alagoano Jorge de Lima,
muito conhecido nas antologias de literatura
brasileira pelo poema Essa Negra Fulô, 
produziu uma poesia das mais fascinantes do Brasil.

Jorge de Lima (União dos Palmares23 de abril de 1893 — Rio de Janeiro15 de novembro de 1953) foi um políticomédicopoetaromancistabiógrafoensaístatradutor e pintor brasileiro. Inicialmente autor de versos alexandrinos, transformou-se em um modernista interessado principalmente nas matrizes africanas da cultura brasileira. Conhecido nas antologias de poesia brasileira pelo poema Essa Negra Fulô (1928), viria a se consagrar como autor de um vasto poema em dez cantos com uma diversidade enorme de formas, ritmos e intertextos - Invenção de Orfeu (1952).

Biografia

Era filho de um comerciante rico e mudou-se para Maceió em 1902, com a mãe e os irmãos. Em 1909 foi morar em Salvador onde iniciou os estudos de medicina. Concluiu o curso no Rio de Janeiro em 1914, mas foi como poeta que projetou seu nome. Neste mesmo ano publicou o primeiro livro, XIV Alexandrinos.
Voltou para Maceió em 1915 onde se dedicou à medicina, além da literatura e da política. Quando se mudou de Alagoas para o Rio, em 1930, montou um consultório na Cinelândia, transformado também em ateliê de pintura e ponto de encontro de intelectuais. Reunia-se lá gente como Murilo MendesGraciliano Ramos e José Lins do Rego. Nesse período publicou aproximadamente dez livros, sendo cinco de poesia. Também exerceu o cargo de deputado estadual, de 1918 a 1922. Com a Revolução de 1930 foi levado a radicar-se definitivamente no Rio de Janeiro.

Em 1939 passou a dedicar-se também às artes plásticas, participando de algumas exposições. Em 1952, publicou seu livro mais importante, o épico Invenção de Orfeu. Em 1953, meses antes de morrer, gravou poemas para o Arquivo da Palavra Falada da Biblioteca do Congresso de Washington, nos Estados Unidos.

Estilo e personalidade

Entre 1937 e 1945 teve sua candidatura à Academia Brasileira de Letras recusada por seis vezes. Para Ivan Junqueira, a Academia cometeu uma imperdoável injustiça com o autor, cujo trabalho literário foi excepcionalmente bem recebido pela crítica e pelo público. O acadêmico não acredita que o poeta tenha transitado à margem da literatura de seu tempo e, afirma, quando se refere ao maior poema do autor - Invenção de Orfeu"…até hoje, transcorridos mais de 50 anos de sua publicação, não há poeta brasileiro que dele não se lembre."
Os textos de Jorge de Lima abrigam uma colossal possibilidade de leituras (a convivência entre a tradição e o novo, o vulgar e o sublime, o regional e o universal) refletem um artista em constante mutação, que experimentou estilos diversos como o parnasiano, o o regional o barroco, o religioso. Na sua multiplicidade, Jorge de Lima pertence a todas as épocas, mesmo se reportando a um tema ou uma situação específica, ao tocar em injustiças sociais que mudaram pouco desde o início da civilização e quando escreve sobre as grandes dúvidas de todos nós, "…da miséria humana, da tentativa de superação de nossas amarras e de nossas limitações.", explica o poeta e jornalista Claufe Rodrigues, leitor voraz de Jorge de Lima.
Ítalo Moriconi, poeta e professor de literatura brasileira na Uerj, autor, entre outros, de Como e por que ler a poesia brasileira do século XX, ao analisar a obra de Jorge de Lima (contrariamente à Ivan Junqueira quanto ao poeta não ter alcançado fama por conta de sua obra ser, em parte, muitas vezes hermética e comprometida com o catolicismo), não acredita na hipótese de que a questão religiosa tenha atrapalhado a carreira do poeta: "Como poeta religioso Jorge de Lima nunca produziu nada com a qualidade de um Murilo Mendes em "Poesia liberdade". O lugar canônico de Lima vem dos sonetos, da sua primeira poesia modernista e, sobretudo de Invenção de Orfeu.".
Moriconi afirma que a maioria dos professores de letras não conhece bem nem Murilo Mendes nem Jorge de Lima e toca num ponto fundamental para a pouca visibilidade do poeta: "…como levar um poeta tão complexo a um currículo básico de graduação? "(…)Quem os conhece, mesmo quando os amam, como é o meu caso, hesitam em substituir um daqueles quatro por esses dois.", referindo-se aos poetas Manuel BandeiraCarlos Drummond de AndradeMário Quintana e João Cabral de Melo Neto.

Poesia

  • XIV Alexandrinos (1914)
  • O Mundo do Menino Impossível (1925)
  • Poemas (1927)
  • Novos Poemas (1929)
  • O Acendedor de lampiões (1932)
  • Tempo e Eternidade (1935)
  • A Túnica Inconsútil (1938)
  • Anunciação e encontro de Mira-Celi (1943)
  • Poemas Negros (1947)
  • Livro de Sonetos (1949)
  • Obra Poética (1950)
  • Invenção de Orfeu (1952)
  • Antologia Poética (1969)

RomancesO anjo (1934)

  • Calunga (1935)
  • A mulher obscura (1939)
  • Guerra dentro do beco (1950)

Fonte: Wikipédia