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5 de novembro de 2014

Poemas de Rosiane Rodrigues


ESCULTURA

anjo bate asas
horizonte deserto
beijo de chuva
de suave gesto

arco-íris e flechas
contra o tempo
esculpindo amor
a favor do vento


DESEJO

longe,
o coração
pranteia

perto,
acelera
e baqueia

fonte
do desejo
permeia


QUIMERA

aquela imagem
ainda cintila
como miragem

a voz caliente
na mente destila
enfraquecida

o sonho se inflama
e a realidade
apaga a chama


TEMPESTADE

nuvem passageira
doce manjar dos céus
altaneira

estrelas ladrilham
passos solitários
trilham

cálida noite
tragar de chuva
açoite

5 de setembro de 2014

Poemas de Cicero Melo

V TAVERNA ALÉM

Cicero Melo

Como o tempo corre e cansa
no relógio do meu peito:
Hoje eu sou uma criança,
ontem era um homem feito.

Como o tempo recupera
os outros tempos do sonho,
o longo quintal da espera
do menino que reponho.

Sou menino recomposto
de tempo, sonho e enfado.
Nas tendas de um rei deposto
todo o presente é passado



A TERCEIRA PELE

Cicero Melo

Procuro a carne da palavra adusta,
Aquela que insorvida se consome,
Aquela cujo selo cai à fronte
Das palavras irmãs e se incrusta
Nas pedras da razão, no verbo nômade,
No dedilhar de febres e de angústias,
No delírio senil da sombra rústica,
Longa noite de sal e medo insone.
Procuro a carne da palavra augusta,
Aquela que se eleve e se prolongue
Em mistério sutil, sedosa e onde
Repouse mar, celebração e bússola.
Procuro a carne da palavra morta
Que se aviva, me bate e me conforta.



A MOTIVAÇÃO ROSA

Cicero Melo

O que motiva essa rosa
além da acesa ternura,
senão o rubro que dosa
minha paixão e loucura?

O que teceu essa dor
que rosa essa rosa ativa,
senão os ventos do amor
em minha face cativa?

Casta rosa, que neblina
a rama de amar me tosa!
Vem cintilante assassina!
Rosa rosa rosa rosa!



PSIQUÊ

Cicero Melo

Asas desnudas, sempre ao som do outono, 
lasciva à sombra, tecelã sem véu;
silvestre acende de fragrância, um céu
aos deuses ébrios, frenesi de sono.
Perfumes, poros, cortesãos sem dono,
O púbis plúvio, reiterado réu.
Eros inflama junto ao peito ao léu
os caminhos sedosos do abandono.
O botão da manhã enfarta a flor.
A alegria projeta a sombra rosa
nos doces sítios em que repousa amor.
E despertas, paisagem deleitosa,
os orgasmos finais de luz e ardor
da borboleta ao vento, incestuosa.



O GOLEM

Cicero Melo

Guardo o poema da Criação
E as faces dos deuses
Em minha memória de argila
E nudez primogênita.

O primeiro vento deu-me o espaço,
com corpos celestiais,
e uma casa.

O segundo, o tempo e o nada.

16 de agosto de 2014

Três poemas de Fernando Fiúza

Maceiota

Fernando Fiúza

Onde Mangabeiras,
ora cimenteira, concreteira, vidraceiral;
onde Poço,
sempre um córrego podre;
onde Farol,
ora candeias furando o escuro
(como de resto o país);
onde Ponta Verde,
ora ponta pardo-fumê;
onde Jatiúca,
ora baldio balneário
emporcalhado de sobras
de pão e plástico;
onde Centro,
hoje roída franja
quarada de deambulantes;
onde mirantes,
hoje monturos;
onde menina acanhada,
hoje putinha assanhada, cartãodescreditada.

Do livro Alagoado (2008)


Novelo

Fernando Fiúza

Não se entra a soco no jardim da musa:
uma ponta de faca sai da porta
na direção da sua mão que confusa
já não sabe se escreve ou se se corta.
Sossega, deixa o verso aparecer
– agulha de sol na poça de chuva
incide na moeda que fissura
teus olhos tão cansados de beber.
Bem sei que toda insônia é pesadelo;
levanta, rega as plantas, faz um chá,
acende outro cigarro, vai no espelho
– Teus olhos tão cansados de chorar –
e o verso desce às cordas num novelo
feito de sangue e nuvem, devagar.

Do livro O Vazio e a Rocha (1992)


Palavras do Vento

Fernando Fiúza

Levo o que posso, o que não, quebro, tenho remorso, volto, faço-me fresca, assobio na janela e dou golpes mortais. Sou como Deus: sabe-se que existo, mas ninguém me vê, só o que animo até a destruição – pela tosse, pela água, pelo fogo – de tudo que tomba e voa. Cachorro da moléstia, mordo o homem e o que ele fez – de um penteado ligeiro ao Coliseu. Folheio livros, mas prefiro jornais, na rua ou no deserto. Gosto muito de pó, de entranhá-lo na pele, nas ventas do cavalo corredor e na cabeça das mulheres vazias; também gosto de bandeiras, de dar vida às cores fazendo-as tremer. A água quis me peitar, mas sendo fêmea e boa de ver, corria contra o tempo – cruel com tudo que é belo. Um dia aqui, outro amanhã e nada restará sobre a Terra, só eu, sonhando com o vácuo, lembrando a febre dos homens, a foda entre as flores e as palavras que levava quando havia primavera.”


Do livro Tira-prosa (2004)

7 de junho de 2014

Poemas de Jacinta Passos

Cantigas das mães

Jacinta Passos
(para minha mãe)

Fruto quando amadurece
cai das árvores no chão,
e filho depois que cresce
não é mais da gente, não.
Eu tive cinco filhinhos
e hoje sozinha estou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.

Tão lindos, tão pequeninos,
como cresceram depressa,
antes ficassem meninos
os filhos do sangue meu,
que meu ventre concebeu,
que meu leite alimentou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.

Muitas vidas a mãe vive.
Os cinco filhos que tive
por cinco multiplicaram
minha dor, minha alegria.
Viver de novo eu queria
pois já hoje mãe não sou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.

Foram viver seus destinos,
sempre, sempre foi assim.
Filhos juntinhos de mim,
Berço, riso, coisas puras,
briga, estudos, travessuras,
tudo isso já passou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.

Do livro Nossos poemas, Salvador: A Editora Bahiana, 1942


 Canção da alegria

 Jacinta Passos

Urupemba
urupemba
mandioca aipim!
peneirar
peneirou
que restou no fim?

Peneira massa peneira,
peneira peneiradinha,
(Ai! vida tão peneirada)
peneira nossa farinha.

Olhe o rombo
olhe o rombo
olhe o rombo arrombou!
olhe o cisco
olhe o risco
urupemba furou!

Eh! sai espantalho
da ponta do galho!

Escorra! Escorra!
Tirai essa borra!

Urupemba
urupemba
mandioca aipim!
peneirar
peneirou
que restou no fim?

Farinha fininha
peneiradinha!

Ai! vida, que vida
nuinha! nuinha!


Diálogo na sombra

Jacinta Passos

– Que dissestes, meu bem?

Esse gosto.
Donde será que ele vem?

Corpo mortal.
Águas marinhas.

Virá da morte ou do sal?
Esses dois que moram no fundo e no fim.

– De quem falas amor, do mar ou de mim?

Do livro Canção da partida, S. Paulo, Edições Gaveta, 1945


Canção atual

Jacinta Passos

Plantei meus pés foi aqui
amor, neste chão.

Não quero a rosa do tempo
aberta
nem o cavalo de nuvem
não quero
as tranças de Julieta.

Este chão já comeu coisa
tanta que eu mesma nem sei,
bicho
pedra
lixo
lume
muita cabeça de rei.

Muita cidade madura
e muito livro da lei.

Quanto deus caiu do céu
tanto riso neste chão,
fala de servo calado
pisado
soluço de multidão.

Coisas de nome trocado
– fome e guerra, amor e medo –

Tanta dor de solidão.

Muito segredo guardado
aqui dentro deste chão.

Coisa até que ninguém viu
ai! tanta ruminação
quanto sangue derramado
vai crescendo deste chão.

Não quero a sina de Deus
nem a que trago na mão.

Plantei meus pés foi aqui
amor, neste chão.


Canção do amor livre

Jacinta Passos

Se me quiseres amar
não despe somente a roupa.

Eu digo: também a crosta
feita de escamas de pedra
e limo dentro de ti,
pelo sangue recebida
tecida
de medo e ganância má.
Ar de pântano diário
nos pulmões.
Raiz de gestos legais
e limbo do homem só
numa ilha.

Eu digo: também a crosta
essa que a classe gerou
vil, tirânica, escamenta.

Se me quiseres amar.

Agora teu corpo é fruto.
Peixe e pássaro, cabelos
de fogo e cobre. Madeira
e água deslizante, fuga
ai rija
cintura de potro bravo.
Teu corpo.

Relâmpago depois repouso
sem memória, noturno.


O rio

Jacinta Passos

Tantos rios como eu abriram leito de pedras
e pranto. Um dia perguntávamos:

– Dizei-me, curva, onde vou? casa trono rocha sois
aqueles que ficam, minha lei é não parar. Sigo
fio de água, água humilde sou, para onde? Ó curva,
falai. Água de revolta, espuma e ódio nos poros
na garganta no útero, pranto de mulher, água
de fel antigo, quem é meu semelhante? Dizei, onde vou?

Leito de pedras e pranto. Súbito, próximo,
Atravessou, olhai, ele!
ali na frente, vivo, tão vivo,
ele sim! o rio das águas inúmeras. Correi
doçuras e dores, punhos, Partido, esperança nossa…


1935

Jacinta Passos

Tenso como rede de nervos
pressentindo ah! novembro
de esperança e precipício.

Fruto peco.

Novembro de sangue e de heróis.

Grito de assombro morto na garganta,
soluço seco dor sem nome. Ferido.
De morte ferido. Como um animal ferido. Luta
de entranhas e dentes. Natal.
Sangue. Praia Vermelha.

Sangue.
Sangue. É quase um fio
escorrendo
sangrento
tenaz
por dentro dos cárceres,
nas ilhas
e nos corações que a esperança guardaram.


Do livro Poemas políticos, Rio de Janeiro: Livraria-Editora Casa do Estudante do Brasil, 1951 


Uma vida tumultuada           -            Biografia

A baiana Jacinta Passos nasceu em Cruz das Almas, na região do Recôncavo da Bahia, em 1914, filha de Berila Eloy e Manuel Caetano da Rocha Passos, pertencentes a famílias tradicionais da região, muito católicas. Seu avô paterno, Themístocles da Rocha Passos, duas vezes Senador na Província (depois Estado) da Bahia, é hoje nome da principal praça da cidade. Seu pai, também político, foi eleito deputado estadual quatro vezes, as duas últimas pela UDN.
Jacinta passou a infância entre o núcleo urbano de Cruz das Almas e a fazenda Campo Limpo, de propriedade do pai, onde nascera e morava com a família, mergulhada na cultura do fumo, das tradições africanas e das canções infantis que marcariam sua poesia. Após a transferência da família para Salvador, cursou a Escola Normal, onde se formou com láurea. Trabalhou como professora de matemática, dando aulas particulares e, depois, na prestigiosa Escola Normal onde se formara. Nessa época, era muito religiosa. Praticava a religião com uma entrega total, dedicando-se com fervor e buscando uma união profunda e direta com Deus.
Desde o final da década de 1920 escrevia poemas, em geral de conteúdo religioso. Nos anos 30, ao lado do irmão, o estudante de medicina e também poeta Manoel Caetano Filho, participou de círculos e grupos literários de Salvador, como a Ala das Letras e das Artes (ALA), chefiada pelo crítico Carlos Chiacchio. Seus poemas começaram a circular entre os intelectuais da cidade. Continuava religiosa, mas, à medida que o tempo passava, sua religiosidade ia adquirindo conteúdo social e militante.
A partir da eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939, envolveu-se fortemente com política. Ao lado do irmão, assumiu posições públicas e participou de movimentos a favor da paz mundial e do final da ditadura do Estado Novo. Denunciou as opressões que pesavam sobre as mulheres, defendendo mudanças imediatas na condição feminina. Continuava católica, porém cada vez mais afastada das posições ortodoxas da Igreja.
Após a entrada do Brasil na guerra, em 1942, participou intensamente da luta antinazista e antifascista, envolvendo-se com grupos de esquerda. Tornou-se também uma ativa jornalista, escrevendo sobre temáticas sobretudo sociais. Foi uma das poucas mulheres da Bahia, à época, a assumir posições políticas públicas e a desenvolver uma intensa e regular atividade jornalística, publicando artigos e poesias no jornal O Imparcial e na revista cultural Seiva. Publicou semanalmente em O Imparcial uma “Página Feminina”, que ampliava muito os assuntos habitualmente reservados às mulheres, introduzindo discussões políticas e literárias.
Jacinta alargou seus contatos literários, dedicando-se com afinco à poesia. Em 1942, publicou o livro Nossos poemas (Salvador, A Editora Bahiana), cuja primeira parte, "Momentos de Poesia", contém poemas seus, enquanto a segunda, "Mundo em Agonia", reúne poemas do irmão, Manoel Caetano Filho. O volume mereceu boas críticas na imprensa, firmando os nomes dos dois poetas no meio intelectual baiano.
Jacinta Passos tornou-se amiga de intelectuais comunistas, como Jorge Amado, que no final de 1942 retornara à Bahia, aprofundando a participação em movimentos sociais e feministas. Nessa época, abandonou o catolicismo.
Mudou-se em 1944 para São Paulo, onde se casou com o jornalista e escritor James Amado. No ano seguinte, publicou seu segundo livro, Canção da Partida (São Paulo, Edições Gaveta), contendo dezoito poemas, três transcritos do livro anterior. A edição, extremamente bem cuidada, foi de apenas duzentos exemplares, numerados e assinados pela autora e ilustrados pelo grande artista Lasar Segall. Canção da Partida recebeu críticas muito elogiosas de intelectuais expressivos como Aníbal Machado, Antonio Candido, Gabriela Mistral, José Geraldo Vieira, Mário de Andrade, Roger Bastide e Sérgio Milliet, firmando o nome da poeta no cenário nacional.
Jacinta Passos continuou fortemente envolvida com política. Lutou pelo final da guerra, pela redemocratização do Brasil, pela liberdade de expressão, pela anistia aos presos políticos e pela ampliação dos direitos das mulheres. Em 1945, ano em que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi legalizado e lançou uma grande campanha de filiação de novos membros, ingressou oficialmente nesse partido, nele permanecendo até morrer.
De volta a Salvador, foi candidata a deputada federal e a deputada estadual pelo PCB, não se elegendo. Contribuiu para o jornal comunista O Momento e continuou participando ativamente da política. Em 1947, após uma gravidez muito difícil, deu à luz sua filha única. Com o marido e a filha, viveu alguns anos em uma fazenda no sul da Bahia, onde se dedicou à família e à escrita.
Mudou-se em 1951, com a família, para o Rio de Janeiro, onde lançou seu terceiro livro, Poemas políticos (Rio de Janeiro, Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil). Contendo dez poemas inéditos, políticos e líricos, além de uma seleção de poesias anteriores, Poemas políticos ampliou o prestígio da escritora, tornando-a mais conhecida nos círculos literários do Rio de Janeiro, a capital do país.
No final desse ano sofreu grave crise nervosa, com delírios persecutórios. Ficou vários meses internada em sanatórios do Rio, onde foi diagnosticada como portadora de esquizofrenia paranóide, considerada então uma doença progressiva e irrecuperável. Durante essa internação e nas seguintes, foi tratada à base de choques elétricos, injeções de insulina e barbitúricos. Transferida para a Clínica Psiquiátrica Charcot, em São Paulo, teve o diagnóstico confirmado.
Em 1955, separada do marido e da filha, regressou a Salvador, voltando a residir com os pais. Continuou militando no PCB, um partido em crise, ensinou em comunidades pobres de Salvador e publicou artigos sobre literatura no jornal comunista O Momento, onde, durante alguns meses, foi também responsável por uma página literária. Continuou escrevendo poesias. Recebeu a visita da filha durante duas férias escolares e a visitou, no Rio de Janeiro.
Publicou em 1957 seu quarto livro, A Coluna (Rio de Janeiro, A. Coelho Branco Fº Editor). O volume contém um longo poema épico, de quinze cantos, sobre a Coluna Prestes, marcha de cerca de vinte e cinco mil quilômetros, empreendida na década de 1920, e liderada, entre outros, por Luiz Carlos Prestes, que buscava mudanças políticas profundas para o Brasil. O livro foi bem recebido por críticos como Paulo Dantas. Vários de seus trechos foram transcritos em publicações de esquerda do país, até 1964.
Após permanecer cerca de dois anos na cidade pernambucana de Petrolina, onde vivia sozinha e em extrema pobreza, transferiu-se em 1962 para Aracaju, em Sergipe. Ali morou, também sozinha, em Barra dos Coqueiros, povoação de pescadores situada em frente à cidade. Vivia muito pobremente, em um barraco de madeira, à beira do rio. Possuía uma máquina de escrever, onde, à noite, datilografava poemas e textos políticos, que distribuía pelas ruas durante o dia. Numa época de grande agitação e polarização política, desenvolveu, sozinha e ao lado de integrantes do PCB local, intensa militância junto a pescadores, estudantes e trabalhadores, inclusive após o golpe militar de 1964.
Foi detida em 1965, quando pichava nos muros da cidade palavras de ordem contrárias à ditadura. Recolhida ao 28º BC de Aracaju, graças à interferência da família Passos foi transferida para um sanatório particular da mesma cidade, a Casa de Saúde Santa Maria, onde permaneceu até sua morte, em 28 de fevereiro de 1973, aos cinqüenta e sete anos de idade.

23 de abril de 2014

Quatro poemas de Jorge de Lima

Um monstro flui nesse poema


Jorge de Lima


Um monstro flui nesse poema
feito de úmido sal-gema.

A abóbada estreita mana
a loucura cotidiana.

Pra me salvar da loucura
como sal-gema. Eis a cura.

O ar imenso amadurece,
a água nasce, a pedra cresce.

Mas desde quando esse rio
corre no leito vazio?

Vede que arrasta cabeças,
frontes sumidas, espessas.

E são minhas as medusas,
cabeças de estranhas musas.

Mas nem tristeza e alegria
cindem a noite, do dia.

Se vós não tendes sal-gema,
não entreis nesse poema.


(Invenção de Orfeu, Canto Quarto, Poema I)


Este poema de amor não é lamento


Jorge de Lima


Este poema de amor não é lamento
Nem tristeza distante, nem saudade,
Nem queixume traído nem o lento
Perpassar da paixão ou pranto que há de


Transformar-se em dorido pensamento,
Em tortura querida ou em piedade
Ou simplesmente em mito, doce invento,
E exalta visão da adversidade.


É a memória ondulante da mais pura
E doce face (intérmina e tranquila)
Da eterna bem-amada que eu procuro;


Mas tão real, tão presente criatura
Que é preciso não vê-la nem possuí-la
Mas procurá-la nesse vale obscuro.
                                    

Vereis que o poema cresce independente


Jorge de Lima


Vereis que o poema cresce independente
e tirânico. Ó irmãos, banhistas, brisas,
algas e peixes lívidos sem dentes,
veleiros mortos, coisas imprecisas,

coisas neutras de aspecto suficiente
a evocar afogados, Lúcias, Isas,
Celidônias... Parai sombras e gentes!
Que este poema é poema sem balizas.

Mas que venham de vós perplexidades
entre as noites e os dias, entre as vagas
e as pedras, entre o sonho e a verdade, entre...

Qualquer poema é talvez essas metades:
essas indecisões das coisas vagas
que isso tudo lhe nutre sangue e ventre.


(De Livro de Sonetos - 1949)


O cavalo em chamas


Jorge de Lima


Era um cavalo todo feito em chamas
alastrado de insânias esbraseadas;
pelas tardes sem tempo ele surgia
e lia a mesma página que eu lia.

Depois lambia os signos e assoprava
a luz intermitente, destronada,
então a escuridão cobria o rei
Nabucodonosor que eu ressonhei.

Bem se sabia que ele não sabia
a lembrança do sonho subsistido
e transformado em musas sublevadas.

Bem se sabia: a noite que o cobria
era a insânia do rei já transformado
no cavalo de fogo que o seguia.


Era um cavalo todo feito em lavas
recoberto de brasas e de espinhos.
Pelas tardes amenas ele vinha
e lia o mesmo livro que eu folheava.

Depois lambia a página, e apagava
a memória dos versos mais doridos;
então a escuridão cobria o livro,
e o cavalo de fogo se encantava.

Bem se sabia que ele ainda ardia
na salsugem do livro subsistido
e transformado em vagas sublevadas.

Bem se sabia: o livro que ele lia
era a loucura do homem agoniado
em que o íncubo cavalo se nutria.



(Invenção de Orfeu, Canto Quarto, poemas II e IV)

1 de abril de 2014

Gonzaga Leão

 A poesia engajada contra o obscurantismo do regime autoritário

Veja artigo em http://reporteralagoas.com.br/novo/?p=75330

A praça *

Gonzaga Leão
Não te chamo a passeio pela praça
porque a praça morreu e está cercada 
de muros. Há estranhos operários 
trabalhando: em lugar de pá e enxada

usam feios fuzis e sabres sujos.  
E as árvores da praça assassinada
já não podem dar flor nem dar mais fruto
nem mesmo a sombra amiga e desejada.

Por isso não te chamo para a praça   
com este céu de manhã quase noturno 
e operários estranhos e fardados.

Peço-te apenas que me dês a mão 
e juntos amassemos nosso pão                                                                             que se é feito de amor não sai amargo.

* Composto pelo poeta, em julho de 1964, quando da visita aos amigos presos, na antiga penitenciária da Praça da Independência.

Preparação da manhã

Gonzaga Leão

É duro dizer, criança
filho do triste operário
do sofrido camponês
que em vez dos belos brinquedos
que te fariam feliz,
dar-te-ei canhões fuzis
e a noite feita de medo;
contar-te-ei em segredo
(não histórias pra dormir)
que neste imenso país
somente o rico é feliz
só o rico tem porvir;
e contar-te-ei também
que o pão que falta em teu prato
sobra no prato de alguém;
que tua roupa nenhuma
não mais serve a quem a tem.

Mas direi no entanto a ti
(rudemente enquanto falo)
que nessa estrada de agora
não muito distante a aurora
já avia seus cavalos
com seu jaezes de fogo
e ardentes ferros nos cascos
com sua fonte de sol
a celebrar-se nos olhos,
que deixarão claridades
de manhãs onde passarem:
- e não haverá mais sede
boca não dessedentada
rios que não tenham ponte
de paz e fraternidade.

E no chão de todo o mundo
transformado em bem comum
rebentarão as sementes
e o pão será permanente
na mesa de qualquer um.

Fevereiro de 1963

11 de março de 2014

Poemas de Ubirajara Almeida

Cânticos ( I )

Ubirajara Almeida

Ceifei a juventude em noites
encantadas de álcool, música,
com intermináveis mulheres.
Embriagado vivi na opulência
de sensações amorosas
a deslizar sobre o corpo.
Vivam os dias que se foram
nos perfumes destilados
pelos desejos ternos
de variados sabores.
Nunca dei um dia
de trabalho feliz
mas as horas de prazeres
enfeitavam mais e mais
a vontade da sobrevivência.
Basta-me um lápis, um papel
e uma Musa. Não existe
riqueza maior do que esta
revelação emocional.

(De Dez Lírios & Tremifusas – Maceió 2012)


Cantata Nº 2

Ubirajara Almeida

Entre alegres numes e doces ninfas
Certamente estou com deuses no Olimpo
A beber goles de encantadas linfas
No vítreo corpo do cristal mais limpo.

Do sopro de Pã, valsa em semifusa
Uma feminina forma brejeira
De cor divinal com seu olhar de musa
Numa pintura luso-brasileira.

A iguaria farta ao som dos açoites
Nasce nas folhas das mil e uma noites
Para saciar o sonho cortesão.

Dança a deusa tão leve que flutua
Nos perfumados tons vindos da lua
Onde palpita a solene invenção.


(De Inventário do Silêncio – Maceió 2012)